Deixei para trás o hábito de ler. Já nada leio a não ser um ou outro jornal, literatura ligeira e ocasionalmente livros técnicos relacionados com o que porventura estudo e em que o simples raciocínio possa ser insuficiente.
Deixei para trás o hábito de ler. Já nada leio a não ser um ou outro jornal, literatura ligeira e ocasionalmente livros técnicos relacionados com o que porventura estudo e em que o simples raciocínio possa ser insuficiente.
O género definido de literatura quase o abandonei. Poderia lê-lo para aprender ou por gosto. Mas nada tenho a aprender, e o prazer que se obtém dos livros é do género que pode ser substituído com proveito pelo que me pode proporcionar directamente o contacto com a natureza e a observação da vida.
Encontro-me agora em plena posse das leis fundamentais da arte literária. Shakespeare já não me pode ensinar a ser subtil, nem Milton a ser completo. O meu intelecto atingiu uma flexibilidade e um alcance tais que me permitem assumir qualquer emoção que deseje e penetrar à vontade em qualquer estado de espírito. Quanto àquilo por que sempre se luta com esforço e angústia, ser-se completo, não há livro que valha.
Isto não significa que eu tenha sacudido a tirania da arte literária. Aceito-a apenas sujeita a mim próprio.
Há um livro de que ando sempre acompanhado —As Aventuras de Pickwick. Li várias vezes os livros de Mr. W. W. Jacobs. O declínio do romance policial fechou para sempre uma das minhas portas de acesso à literatura moderna.
Deixei de me interessar por pessoas que são apenas inteligentes — Wells, Chesterton, Shaw. As ideias desta gente são das que ocorrem a muitos que não são escritores; a construção das suas obras é inteiramente um valor negativo.
Tempo houve em que eu lia apenas pela utilidade da leitura, mas agora compreendo que há pouquíssimos livros úteis, mesmo os que versam assuntos técnicos que me possam interessar.
A sociologia é [...]; quem pode tolerar tal escolástica na Bizâncio de hoje?
Todos os meus livros são de consulta. Leio Shakespeare apenas em relação com o Problema de Shakespeare; o resto já o sei.
Descobri que a leitura é uma forma servil de sonhar. Se tenho de sonhar, por que não sonhar os meus próprios sonhos? [...]
1910? Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 22.