Em Roma, Michelângelo morou bem perto da Coluna de Trajano, um monumento de quase 40 metros de altura construído em torno do ano 100 d.C. Impossível não ficar impressionado com a sofisticação tecnológica da engenharia da Roma antiga.
A tal coluna foi construída com 20 cilindros enormes de mármore, cada um pesando 32 toneladas. A colocação dos cilindros superiores foi uma façanha digna de um imperador romano. Para os construtores renascentistas, aquilo era algo sobre-humano.
E a não menos sobre-humana escultura de Michelângelo representando Davi merecia ser colocada em algum lugar igualmente elevado. Filippo Brunelleschi, um dos mais importantes arquitetos e engenheiros do Renascimento, inventou um sem número de guindastes de vários tipos e para diferentes finalidades (como o que foi usado na construção do domo da Catedral de Florença). Mas nenhum desses dispositivos conseguiria cumprir a tarefa de elevar o Davi até o local inicialmente pretendido: o topo de uma das colunas laterais daquela mesma catedral.
A escultura pesa 8 toneladas e meia — mais que o peso de quatro automóveis grandes. Para levá-la até aquela altura teriam que usar uma boa quantidade de cordas grossas, que eram difíceis de conseguir e, seja como for, ninguém sabia se aguentariam o peso. Se a escultura oscilasse demais, ou se fosse puxada de modo brusco, as cordas não seriam fortes o bastante para resistir à força dinâmica da gravidade. E mesmo que desse certo, como saber se a coluna da catedral iria suportar o peso concentrado do colossal Davi ? Além disso, naquela altura o vento também poderia comprometer sua estabilidade.
Eles imaginaram outras formas de erguer a escultura, contruindo andaimes, por exemplo. Mas Michelângelo sabia que nada disso daria certo. Era uma tarefa impossível. Com aquele maravilhoso jeito irracional dos renascentistas, o artista e os responsáveis pela catedral consideraram seriamente a ideia de içar a estátua com um guindaste, mas logo perceberam que não seria financeiramente viável e que estava além do alcance das tecnologias e dos recursos disponíveis. Talvez já no início, antes mesmo de começar a esculpir, o escultor tenha se dado conta de que não seria possível colocar a peça lá em cima — e talvez tenha sido exatamente isso que o libertou.
O Davi acabou se tornando tão familiar para nós que é difícil perceber o quanto ele foi inovador. Já havia na arte florentina muitas representações altamente valorizadas de Davi, mas mesmo assim Michelângelo criou uma obra única: uma figura gigantesca, surpreendentemente nua e minimamente identificável com o personagem bíblico. Impossível imaginar um modo mais peculiar de representar o jovem pastor hebreu, ou uma figura mais inapropriada para adornar uma catedral. Pode ser que o Davi seja como é justamente porque o escultor, percebendo que a estátua não seria colocada no alto da catedral, tenha se sentido livre para produzir um trabalho radicalmente original. Pois foi exatamente o que fez.
Com o Davi, Michelângelo tornou-se um criador de maravilhas e um artista famoso. Ele tinha apenas 29 anos e ainda viveria outros 60, mas nunca, depois dessa obra, ficou sem trabalho, tão extraordinária que foi a façanha de esculpi-la.
A carreira de Michelângelo caracterizou-se por uma série de obras que evidenciaviam sua genialidade e originalidade, e em um mundo onde a originalidade era tão valorizada isso gerou uma enorme demanda. Mas tudo poderia ter sido diferente se ele tivesse simplesmente esculpido uma estátua decorativa para a catedral. Ao invés disso, sabendo que estava livre daquela exigência circunstancial, conscientemente criou uma obra de arte original.
Mas se o lugar do Davi não era em cima da catedral, onde ele seria colocado então? Michelângelo não tinha nenhuma influência significativa direta sobre o destino da escultura, mas isso não o incomodou, pois já tinha realizado o propósito maior: tinha criado uma obra prima. Agora cabia aos cidadãos de Florença encontrar um local adequado para expor a obra.
Na audiência pública para discutir o lugar da estátua, a única pessoa que defendeu a ideia de colocá-la no local originalmente planejado foi o marceneiro Francesco Monciatto. Na abertura falou, entre outros, o próprio Miquelângelo, advertindo que "a instalação precisaria ser firme e estruturalmente confiável." Foi isso, de fato, que excluiu o topo da catedral, e ninguém mais, além do marceneiro, levou a sério a ideia inicial.
No fim das contas, Michelângelo criou "o Gigante" — mais do que um Davi, uma deslumbrante obra de arte cujo tema é ela mesma. E como tal, a obra fugiu dos parâmetros comuns que determinaram a maior parte da arte renascentista: contexto, tradição e precedência, além do controle dos patronos e a expectativa do público.
E foi assim que uma tarefa impossível deu ímpeto à criação de uma escultura única, e impulsionou decisivamente uma carreira artística fora do comum.
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Este texto é uma tradução livre minha, adaptada de um artigo que William Wallace (não o herói do século XIII mas um estudioso estadunidense de História da Arte) publicou no saite da revista ArtNews em 14/04/2014.
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